Continuação da entrevista de ontem com Arthur Simões, mente sã que passou mais de três anos na estrada completando a volta ao mundo de bicicleta. Curtam:
Arthur descansando no Laos
Como foi a questão do roteiro? Havia um programa inicial? Foi possível seguir a programação?
Já tinha um programa no projeto inicial, até porque você tem que levar tudo detalhado para dar ao patrocinador uma certa credibilidade. Então eu tinha isso bem detalhado, não só de países, como também de cidades que eu passaria e tudo mais. Mas teve uma reviravolta no projeto um mês antes de eu sair. O projeto começava em 03 de abril, e eu sairia de Londres, em direção ao leste, dando a volta o globo sempre indo para o leste. Daria pra saber que a realização do projeto em si tinha custado bastante, e tinha usado praticamente todo o meu dinheiro. Quando eu coloquei meus pés na estrada, eu tinha sei lá… cem reais na minha conta, não tinha nada! [risos] E o patrocínio tinha ficado de me pagar a partir do momento em que eu estivesse pedalando. E quando você lida com empresa também tem um punhado de burocracia, uma série de papelada… Mas, como eu já previa que iria sair sem grana, eu vi que não daria para eu pegar um avião pra Londres, que é uma das cidades mais caras do mundo, para ficar ali me aclimatando para depois viajar na Europa. Seria muito caro, não iria dar certo. Então eu tentei negociar com o patrocinador, mas eles não quiseram adiantar, aí eu falei “o único jeito vai ser começar daqui e inverter o trajeto”. Então, ao invés de ir pra leste, eu resolvi ir para oeste. Comecei aqui no parque Ibirapuera, no Monumento das Bandeiras, indo para a América do Sul, que foi realmente uma escolha mais inteligente. Até porque você tem que ir aos poucos se acostumando, especialmente em relação aos choques culturais. Começar aqui na América do Sul, em países católicos, colonizados por nações latinas, que falam espanhol: foi um bom começo, na realidade.
Sozinho no deserto do Atacama (Chile)
Chegou a adoecer durante a viagem?
Sim, algumas vezes [risos]. Eu não peguei nada de muito grave, não peguei nenhuma dessas doenças mais inóspitas. Peguei ameba três vezes… Mas meus maiores problemas foram problemas alimentares. Aqui no Brasil, talvez o maior problema foi o fato de eu ser vegetariano. Fui vegetariano durante três anos, e foi durante a viagem que eu voltei a comer carne, aqui na América do Sul. Porque, não demorou muito e eu descobri que quando você está nessa situação tem que comer o que tem, não tem muito o que escolher. Tem cachorro, vai comer cachorro; tem camelo, vai comer camelo; enfim, vai comer o que tiver. Ainda mais pra quem ta pedalando, o alimento era mais que comida pra mim: era o meu combustível…
E voltou a ser vegetariano?
Não, ainda não [risos]. Agora não, mas eu não como muita carne, nunca comi muito.Eu nunca tinha tido problema alimentar, e durante a viagem só tive isso. Não peguei nenhuma vez gripe, peguei um ou dois resfriados. Depois eu fiz uns exames na Europa e constataram que eu até peguei malária, mas meu sistema imunológico estava tão forte que a malária nem se manifestou. Era uma malária branda, se pegasse uma das “boas” talvez tivesse que ficar de cama um bom tempo. Tinha uma série de riscos, mesmo assim não fiquei tão doente quanto se espera, mas em relação à comida não teve jeito, peguei giárdia… peguei uma série de bactérias…
Ajuda do exérdito local (Iêmen)
E como foi o preparo físico pra sair para a jornada?
Eu não me preparei tanto quanto eu queria, na verdade. Eu já tinha um preparo bom, era professor de ioga, levava uma vida saudável, mas me preparei mais ao longo da viagem. Quando eu comecei, iniciei com distâncias mais curtas, e essas distâncias foram aumentando. Mas também é uma adaptação rápida, se você não tem vícios, não fuma, não bebe muito… Se você não tem vícios, o corpo se adapta de uma maneira bem rápida, da mesma forma que se desadapta. Se você pára, acaba perdendo essa forma de maneira bem rápida, você sente uma diferença significativa. Mas, muito mais do que uma preparação física em si, existe uma preparação psicológica muito grande. E nisso eu não posso negar que o ioga deu uma base boa. Na verdade, o preparo físico acaba indo bem depois que você pega o condicionamento. Tem um momento que o corpo se transforma numa máquina, depois de uns dias pedalando sem descanso. Mas o emocional não tem uma adaptação como o corpo, ele não se transforma, não fica super forte. É bem complicado você ter que lidar com desapegos… Quanto mais tempo você fica longe, parece que mais difícil fica pelo lado emocional; e em relação ao corpo, quanto mais você pratica, melhor fica. Eu tinha 24 anos quando saí para a viagem, e nessa idade o pessoal ta se formando ou se formou, ta indo procurar trabalho, ta com uma namorada ou indo morar sozinho, as mulheres já estão querendo uma relação mais séria… As coisas estão indo pra esse sentido, e eu resolvi remar contra a maré, cara. Fui para um lado completamente oposto, larguei namorada, larguei trabalho, larguei expectativa, larguei tudo e fui pro mundo com uma bicicleta e só. Você lidar com esse fato de não ter um endereço, não ter um telefone, não ter um lugar para ir quando a coisa apertar, do tipo “to com problema, vou passar um final de semana na casa dos meus pais”: não tem mais… Essas coisas no começo não fazem diferença nenhuma, mas com o tempo você vai pensando “pô, o que um mais queria era um arroz com feijão”, “o que eu mais queria era trocar uma idéia com um amigo”, “o que eu mais queria era falar português”- às vezes eu passava seis meses sem falar português. São coisas extremamente simples que você não tem…
Siesta no Salar de Uyuni (Bolívia)
E como tu te sente hoje em relação a isso? Tu te fortaleceu de outras maneiras?
Sim, eu acho que teve uma série de mudanças em relação a perspectivas, a limitações. Acho que me fortaleceu por um lado, mas me sensibilizou muito. Hoje em dia, eu vejo morador de rua aqui e me dá uma sensação extremamente ruim, às vezes até quase choro de ver essa gente na rua. Isso era uma coisa que eu não sentia, não tinha nada disso. Não sei se é a palavra certa, mas acho que desenvolvi compaixão, uma certa sensibilidade em si, de estabelecer um vínculo com o próximo, até com quem você nem conhece, mas pelo simples fato de ser um ser humano. Acabei descobrindo que a diferença entre alguém que está na rua e eu que estou aqui é zero.
Subindo o Monte Sinai (Egito)
A gente estava aqui te ouvindo e sentiu muita identificação, porque as pessoas acabam seguindo linhas de destino muito semelhantes, e quando tu escolhe outro caminho, é muito difícil de seguir, de bancar essas decisões. Tu te sente um estrangeiro?
Há tempos, viu. Quando eu cheguei eu me senti mais, especialmente quando eu cheguei na Bahia, e muitos baianos me chamavam de espanhol, é bem complicado. Eu me senti um estrangeiro durante muito tempo. Faz quatro meses que eu cheguei em São Paulo, então não faz tanto tempo, pra quem ficou tanto tempo fora. Não é que eu me sinta um estrangeiro, eu sinto que eu não tenho raízes fortes aqui. Eu não me sinto um estrangeiro, mas não me sinto mais tão brasileiro…
A bike encontrou novos adeptos no Paquistão
Não te sente parte disso?
É eu não me sinto parte disso aqui mais, esse é o fato. Quando eu saí daqui, eu até escrevia nos meus diários “sou brasileiro” e tal, e hoje em dia eu não escreveria nunca isso. Existe uma mudança em relação às limitações, as fronteiras caem, de uma certa forma. Eu estar aqui, ou estar na França ou no Paquistão não é tão diferente. Tem uma frase interessante do Jean-Paul Sartre que é “não importa o que a vida fez com você, mas o que você faz com que a vida fez com você”, e eu acho que é um pouco por aí: não importa onde você está, é o que você faz no lugar que você está. Não importa se é aqui, na França, no Paquistão, na Tailândia ou na Malásia já não é mais tão diferente. Porque quando eu voltei pra cá eu tive que me adaptar de novo aqui, da mesma forma que eu me adaptava em outros países, porque eu não voltei pro mesmo lugar. É aquela história de que ninguém entra no mesmo rio duas vezes: eu já era diferente, e a realidade aqui mudou, não só os preços subiram, como as pessoas mudaram.
E tu também mudou, né…
Especialmente eu, mas as pessoas também mudaram. Agora alguns amigos estão casados ou tem filho já, essas pessoas já tem uma família, tem outra prioridade. Quando eu estava aqui, eu ia pra balada com essa galera, hoje em dia essas pessoas tem outras prioridades, assim como eu também tenho outras. Então não importa onde você está, você está sempre criando seu futuro a partir do presente, você está sempre construindo teu futuro.
Fotos: Arthur Simões
Texto abertura: Ale Lucchese